I - Sobre quem vos escreve
Aqui eu, homem livre de Lisboa
Escrevo sob o balanço do mar
Hoje o destino ri e caçoa
Hoje, por pessoa, vivo a penar
O vento vai na caravela, manso
E eu de pensar nela não me canso
Sou cria de João, de Isabel
De homem e mulher do Estoril
O homem fez do mar seu mausoléu
A mulher é simples e mui gentil
O vento vai na caravela, manso
E eu de pensar neles não me canso
Sou sonhador, bem como foi meu pai
Em tudo, como ele foi, sou eu
"O sonho morre, a alma se vai"
Então quem não mais sonha já morreu
O vento vai na caravela, manso
E eu de pensar nisso não me canso
Simples, para que Deus olhe por mim
Para eu ser como minha mãe é
"Meu bom filho - ela disse assim -
Largue-me só mas não largue a fé"
O vento vai na caravela, manso
E eu de pensar nisso não me canso
Sobre meus olhos esse céu se fecha
Como se bastasse de me ouvir
A solidão cai como uma flecha
Que não demore de novo o porvir
Pois agora, sob o céu negro, danço
De olhos fechados, sob vento ranço.
II - O hino da missão
Ir ao mar por ser guerreiro
Tal qual João ao passar as Tormentas
É tremer-se por inteiro
E não curvar-se às águas sedentas
O meu peito se conquista
Eu penso e anseio, meu coração
Terras a perder de vista
Novo mundo se Deus der permissão
Ir ao mar por ser guerreiro
Tal qual João ao passar as Tormentas
É tremer-se por inteiro
E não curvar-se às águas sedentas
Vou como foi o bom Lemos
Que se fez homem de honra e fama
Nem outros fizeram menos
Gonçalo Coelho e Vasco da Gama
Ir ao mar por ser guerreiro
Tal qual João ao passar as Tormentas
É tremer-se por inteiro
E não curvar-se às águas sedentas
Não me esqueço de João
Que da família então se desfez
Ao partir em oração
Em junho de mil quinhentos e três
Ir ao mar por ser guerreiro
Tal qual João ao passar as Tormentas
É tremer-se por inteiro
E não curvar-se às águas sedentas
O tempo passou-se tanto
Um tanto tonto de tanto passar
E por isso hoje canto
Canto com alma, ao céu, ao luar
Ir ao mar por ser guerreiro
Tal qual João ao passar as Tormentas
É tremer-se por inteiro
E não curvar-se às águas sedentas
O sol se atreve e raia
Sua luz vem como se me desdenhasse
Meu Deus! Avista-se praia?
Por Deus! O novo mundo mostra a face!
Tenho um lar, não mais Aveiro
Tal qual João ao passar as Tormentas
E sei que seu paradeiro
É descansar no mar de águas lentas
III - Séculos depois
Eu, que vos falo agora, só vos falo agora
Do homem que acima escreveu não soube nada
Certamente perdeu-se pelo mundo afora
Num capítulo qualquer de sua jornada
Esse papel encontrei em minha cidade
A velha garrafa boiava pelos rios
Decerto perderam-se na eternidade
Suas memórias, aventuras, desafios
Henrique Fonseca
Ervália/Viçosa, de 11 a 17 de junho de 2013
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